quinta-feira, 24 de junho de 2010

a criação absurda



Todas essas vidas conservadas no ar rarefeito do absurdo não se saberiam sustentar sem algum pensamento profundo e constante que as anima com sua força. Mesmo esta só pode ser um singular sentimento de fidelidade. Viram-se homens conscientes desempenhar sua tarefa em meio às mais estúpidas guerras sem se acreditarem numa contradição. É que se tratava de não se esquivar a nada. Há, desse modo, uma felicidade metafísica a sustentar a absurdidade do mundo. A conquista ou o jogo, o amor inumerável, a revolta absurda são homenagens que o homem presta à sua dignidade numa campanha em que ele está antecipadamente vencido.

Trata-se apenas de ser fiel à regra do combate. Esse pensamento pode ser suficiente para alimentar um espírito: ele sustentou e sustenta civilizações inteiras. Não se nega a guerra. Tem de se morrer ou viver com ela. De igual modo o absurdo: trata-se de respirar com ele, de reconhecer suas lições e redescobrir sua carne. Quanto a isso, a alegria absurda por excelência é a criação. "A arte e nada além da arte," diz Nietzsche; "temos a arte para não sermos mortos pela verdade".


Na experiência que tento descrever e fazer sentir de diversos modos, é certo que aparece um tormento em cada ponto em que morre outro. A busca pueril do esquecimento, o apelo da satisfação ficam agora sem eco. Mas a tensão constante que mantém o homem diante do mundo, o delírio organizado que o impele a acolher tudo lhe deixam uma outra febre. Nesse universo, a obra é então a única possibilidade de se manter a consciência e se fixar em suas aventuras. Criar é viver duas vezes. A busca tateante e ansiosa de um Proust, sua meticulosa colecção de flores, de tapeçarias e de angústias não significam outra coisa. Ao mesmo tempo, ela não tem outra perspectiva senão a criação contínua e inestimável a que se entregam, todos os dias de sua vida, o comediante, o conquistador e todos os homens absurdos. Todos se empenhavam em imitar, repetir e recriar a realidade deles. Nós acabamos sempre ficando com a cara das nossas verdades. A existência inteira, para um homem que se desviou do eterno, é tão- somente um mimo desmesurado sob a máscara do absurdo. E esse grande mimo é a criação.


Albert Camus
O Mito de Sísifo, 1943 (fragmento)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

fome de ideias


Aquilo que é importante, parece-me, não é tanto o defender a cultura, cuja existência nunca impediu um homem de passar fome, mas sim o extrair daquilo que se chama cultura, ideias cuja força motivadora seja idêntica à da fome.

Antonin Artaud
O Teatro e o Seu Duplo (1938)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

o artista da fome


O numeroso e diverso acervo de máscaras e outros objectos criados ao longo de mais de dez anos foram reunidos pela primeira vez em Dezembro de 2008 na instalação teatral "700 Máscaras à Procura de um Rosto ou um Artista da Fome", 46ª produção da companhia A Escola da Noite — Grupo de Teatro de Coimbra, de que António Jorge é elemento fundador e onde trabalhou como actor, cenógrafo, aderecista e encenador entre 1992 e 2010.

O espectador era convidado a visitar os interstícios do Teatro da Cerca de São Bernardo (os espaços habitualmente ocultos à sua vista, reservados aos artistas e funcionários: o escritório, a lavandaria, a casa das máquinas, o sub-palco, os camarins…), conduzido por um velho guarda de poucas palavras, envolvidos num ambiente sonoro que sublinhava o vazio do espaço, habitado por máquinas e mobílias sem uso. Por sobre o ruído desse abandono ouvia-se, contudo, a voz do "artista da fome" — brilhante reflexão de Franz Kafka sobre a condição do artista dita pacientemente pelo actor/artesão que, amalgamado ao próprio espaço físico que se recusava a abandonar (meio corpo no sub-palco, confundido na palha que o envolvia, tronco e cabeça a assomar na quartelada aberta para a sala de espectáculos), resistia ao tempo e ao esquecimento, último actor e espectador de um teatro abandonado.
O público acabava por desembocar, entrando pelos "fundos", no grande palco onde uma imensidão excessiva de rostos expectantes e objectos insólitos o aguardava.

domingo, 13 de junho de 2010

acto de resistência


A arte é de uma inutilidade tão grande como o sonho e a liberdade. É um exercício de ócio laborioso que nos devolve à condição humilde de eternos curiosos aprendizes. Na precipitação dos tempos modernos e fora dos grandes centros é, ainda mais, um acto de resistência.
A minha experiência artística é no essencial a de um fazedor de teatro. O Teatro preenche uma parte significativa das minhas necessidades e apazigua o meu conflito com a palavra. Embora a apropriação da palavra escrita feita espaço, corpo e acção seja um privilégio maior tem, por natureza, as suas fragilidades e, sobretudo, sobrevive mal ao momento, à indiferença e à ignorância. Assim, de forma complementar, a insatisfação e a dúvida levaram-me, através da manualidade e partindo dos impulsos primitivos como qualquer artesão de tradição popular, a procurar outros caminhos. Foi na máscara que descobri um suporte alternativo de experimentação e comunicação. A máscara é um espaço de síntese, poderoso e polissémico. A máscara, sei-o melhor agora, consegue ser verbo antes do verbo, é matéria concreta e língua universal e, ao contrário da palavra, está condenada a não mentir e a perdurar.
O acaso e a obsessão foram as primeiras ferramentas; depois a criatividade, como uma nódoa, alastrou e ramificou-se seguindo os seus próprios caprichos. As matérias-primas utilizadas foram-se reduzindo à ráfia, ao papel e à pasta de madeira, embora continue a deitar mão e a experimentar tudo o que está próximo. Como matriz para praticamente todos os trabalhos usei os moldes feitos a partir da cara da minha mulher, do meu filho e da minha. Sobre os quais deixei que os materiais, técnicas rudimentares e alguma funcionalidade impusessem a sua vontade lúdica e contaminassem as preocupações mais estéticas ou filosóficas, evitando o cariz ornamental e seguindo a ideia menos virtuosa e mais abstracta de esboço. Mais do que o objecto final, importaram os passos particulares de cada construção.
Foi um percurso solitário de quase uma década, com trânsitos constantes entre impossibilidades e imperfeições valiosas, a exercitar o prazer duma prática compulsiva, em que os procedimentos, as contingências da metamorfose, os pequenos fenómenos de erro e de descoberta foram a minha outra escola. Das muitas madrugadas roubadas, restam as mãos calejadas em algumas destrezas e um povo de mais de 700 máscaras mal encaixotadas por todo o lado. Agrupam-se em grandes clãs conforme a matéria-prima que, por sua vez, se dividem em famílias mais pequenas consoante a forma e o tratamento.
Configuram um princípio de organização interior, duma identidade como artista e como pessoa (persona = máscara). Cada máscara foi um improviso, um acto calculado de libertinagem numa espécie de cadinho onde me reconstruo continuamente no meu caos, nos outros e no mundo. Valem sobretudo como matéria vocabular duma escrita onde as mãos têm autonomia e memória e em que cada gesto foi gramática. Se no teatro a palavra se torna expressão através da interpretação, nas máscaras são os materiais que, através da manualidade, lhes conferem expressão, em discurso com raízes ancestrais, claro e preciso, próximo de uma qualquer verdade, embora feito de frases incompletas, pequenas metáforas em diálogo permanente.
As máscaras, tal como os teatros e as cidades, anseiam ser habitadas. Desta multidão de máscaras onde me incluo, aparentemente silenciosa e resignada, feita de bocados de vida e de morte, emerge uma fome insaciável de habitar uma utopia, um lugar, Coimbra.

Dezembro 2008