domingo, 13 de junho de 2010

acto de resistência


A arte é de uma inutilidade tão grande como o sonho e a liberdade. É um exercício de ócio laborioso que nos devolve à condição humilde de eternos curiosos aprendizes. Na precipitação dos tempos modernos e fora dos grandes centros é, ainda mais, um acto de resistência.
A minha experiência artística é no essencial a de um fazedor de teatro. O Teatro preenche uma parte significativa das minhas necessidades e apazigua o meu conflito com a palavra. Embora a apropriação da palavra escrita feita espaço, corpo e acção seja um privilégio maior tem, por natureza, as suas fragilidades e, sobretudo, sobrevive mal ao momento, à indiferença e à ignorância. Assim, de forma complementar, a insatisfação e a dúvida levaram-me, através da manualidade e partindo dos impulsos primitivos como qualquer artesão de tradição popular, a procurar outros caminhos. Foi na máscara que descobri um suporte alternativo de experimentação e comunicação. A máscara é um espaço de síntese, poderoso e polissémico. A máscara, sei-o melhor agora, consegue ser verbo antes do verbo, é matéria concreta e língua universal e, ao contrário da palavra, está condenada a não mentir e a perdurar.
O acaso e a obsessão foram as primeiras ferramentas; depois a criatividade, como uma nódoa, alastrou e ramificou-se seguindo os seus próprios caprichos. As matérias-primas utilizadas foram-se reduzindo à ráfia, ao papel e à pasta de madeira, embora continue a deitar mão e a experimentar tudo o que está próximo. Como matriz para praticamente todos os trabalhos usei os moldes feitos a partir da cara da minha mulher, do meu filho e da minha. Sobre os quais deixei que os materiais, técnicas rudimentares e alguma funcionalidade impusessem a sua vontade lúdica e contaminassem as preocupações mais estéticas ou filosóficas, evitando o cariz ornamental e seguindo a ideia menos virtuosa e mais abstracta de esboço. Mais do que o objecto final, importaram os passos particulares de cada construção.
Foi um percurso solitário de quase uma década, com trânsitos constantes entre impossibilidades e imperfeições valiosas, a exercitar o prazer duma prática compulsiva, em que os procedimentos, as contingências da metamorfose, os pequenos fenómenos de erro e de descoberta foram a minha outra escola. Das muitas madrugadas roubadas, restam as mãos calejadas em algumas destrezas e um povo de mais de 700 máscaras mal encaixotadas por todo o lado. Agrupam-se em grandes clãs conforme a matéria-prima que, por sua vez, se dividem em famílias mais pequenas consoante a forma e o tratamento.
Configuram um princípio de organização interior, duma identidade como artista e como pessoa (persona = máscara). Cada máscara foi um improviso, um acto calculado de libertinagem numa espécie de cadinho onde me reconstruo continuamente no meu caos, nos outros e no mundo. Valem sobretudo como matéria vocabular duma escrita onde as mãos têm autonomia e memória e em que cada gesto foi gramática. Se no teatro a palavra se torna expressão através da interpretação, nas máscaras são os materiais que, através da manualidade, lhes conferem expressão, em discurso com raízes ancestrais, claro e preciso, próximo de uma qualquer verdade, embora feito de frases incompletas, pequenas metáforas em diálogo permanente.
As máscaras, tal como os teatros e as cidades, anseiam ser habitadas. Desta multidão de máscaras onde me incluo, aparentemente silenciosa e resignada, feita de bocados de vida e de morte, emerge uma fome insaciável de habitar uma utopia, um lugar, Coimbra.

Dezembro 2008

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